Sobre ser Passista

15/01/2017

Possuímos várias formas de contarmos uma história. Um bom início é entender que toda história tem mais para se saber do que se conta. É neste trecho que se entrelaça vida, experiências, o que queremos contar e o que achamos que o outro pode e quer ouvir.Eu posso discorrer sobre a minha vivência como passista a partir de diversos prismas. Mas eu não consigo mais falar sobre qualquer questão como Passista, sem me desprender de quem eu sou "fora do Carnaval". Permito-me o enlace ao que sou, considerando minha jornada de vida. Nada demais não, muitas vezes, é notório apenas no meu tom de voz que tem "Rafaela" naquele samba.

Abarco histórias pessoais para falar de um tema muito caro à condição de ser Passista Feminina - a objetificação da mulher. Hoje, eu ainda entendo este tema, a partir da minha vivência como Passista/Musa e existe uma compreensão que ora transcende a condição carnavalesca, ora a tem como recurso. Causa e efeito. Recorro assim ao "meu" Itan.

Itan, na tradição Iorubá, é um conjunto de mitos, canções, contos, histórias. Estes e tantos outros elementos culturais são repassados através da oralidade de geração em geração. Hoje, opto por discorrer sobre o tema citado a partir do "meu Itan".

A minha reflexão sobre a Objetificação da Mulher x Minhas Vivências tem como recorte inicial a IMAGEM. Para falar sobre o nosso corpo, precisamos também compreender como entendemos a IMAGEM em nosso cérebro, como a mente humana sugere este entendimento. Para tal, pensemos também em símbolo, o qual, em termos superficiais, é o que representa, sugere ou substitui aquilo que se refere.


A mente humana é um estado de consciência e subconsciência que interpreta a realidade. Isto posto, temos uma dimensão de que o nosso cérebro tem a capacidade de criar e recriar a partir da observação. Para compreensão linear sobre o tema, segundo o autor Giorgio Agambem - no seu texto Aby Warburg e a Ciência sem nome, neurologicamente, imagem e símbolo possuem a mesma função e esta é denominada ENGRAMA. O engrama pode ser percebido como uma alteração bioquímica ou biofísica produzida pela memória de um estímulo forte, como por exemplo, nossos carnavais. Neste estado cristalizam-se cargas energéticas e experiências emotivas, as quais sobrevivem como herança e são transmitidas pela memória social e, desta forma, relacionam-se com as épocas dos temas estimulados.

Ao pensarmos em um recorte carnavalizado - ambientes (quadras e barracões) e no processo de desenvolvimento do desfile de uma escola de samba - temos diversos estímulos que podem potencializar a criação de uma imagem de uma Passista Feminina. E, em diversos momentos estes estímulos recalcam, isto é, desvalorizam a mulher concreta, a mulher a qual a imagem se refere, a Rafaela, a Rafa, a Rafaela Bastos, a Rafinha.

Nos vale ainda ressaltar outros processos naturalizados, dentro do processo de desenvolvimento do Carnaval que envolvem o segmento Passista, os quais contribuem para tipificações, a citar:

- Critérios físicos para fazer parte da ala/segmento.

- Figurino desenhado por um carnavalesco(a) - representação.

- Reuniões de harmonia - Evolução da dança

- Localização no desfile - Destaque, função e representação.

- Artes em movimento, troféus em movimento - Enfoque no desenho de um corpo.

Os temas supracitados podem não ter efeito de causa no imagético que se refere a uma Passista, mas ajudam a construir, cristalizar e perpetuar algum tipo de imagem, principalmente, pelo fato de que muitos resultam de permanências culturais, sociais e ideológicas de nossa sociedade patriarcal.

Fruto destas permanências, o interesse do patriarcado nas mulheres idealizadas é criado e recriado por instrumentos naturalizados em diversas áreas e vertentes da sociedade. Idealizadas, imageadas e estampadas. Mulheres que se tornam muito mais imagem e muito menos corpo na cultura que mascara o desprezo por este mesmo corpo no discurso da preservação do culto a valorização do "samba no pé". Quem nunca ouviu a célebre frase "Passista tem que sambar!"? Que corpo é este não valorizado, por vezes, apenas erotizado? Não discuto ainda neste texto sobre sensualidade, uma característica da dança do samba, a qual eu reconheço, gosto, admiro e entendo como legítima. Sensualidade e erotismo são qualidades distintas, as quais em algumas situações específicas do nosso cotidiano se entrelaçam. Cabe ressaltar que são situações também não apropriáveis, isto é, não podem ser compreendidas conforme o nosso entendimento e prática pessoal.

A imagem ideal de uma mulher, a imagem idealizada, de certo modo, acaba ocultando o fato de que se trate de uma mulher. Ocorre como se a imagem não implicasse algo e concretude à mulher que se refere, ou seja, eu, você, como seres em sua essência.

Entre realidade e imaginação o ganho de causa é sempre o das belas da avenida, implicitamente contidas no segmento Passistas. Este grupo é entendido como um conjunto de beleza e, não se enganem, há objetificação nesta condição, não apenas admiração. Traçando um paralelismo com as Musas da historiografia filosófica, é onde os homens e os indivíduos de modo geral têm, sentem e exercem, enquanto sua ação, o poder de idealização. A partir deste prisma temos associado questões como julgamento prévio, definição, exclusão. Neste momento de seus pensamentos, onde somos idealizadas, nos calam e moldam nossa imagem. São idealizações a partir da mulher concreta, que está ali, desfilando. Me lembro de outra frase que todas passistas devem ter ouvido em algum momento: "Quero tirar foto só da bunda, virem-se de costas" ou o envergonhado dedo girando até 180°.

São efeitos de linguagem e do comportamento tornar a mulher objetificada e, desta forma, citá-la como mulher idolatrada. Reflitam! Esta imagem da mulher idolatrada é necessária pois legitima a nossa desconstrução na quarta-feira de cinzas, ignorá-la nos outros dias do ano e endeusá-la, enclausurá-la em 3 dias de Carnaval. Endeusam uma imagem que carrega nosso corpo e pessoa e, por meio deste imagético, sublimam, não contraditoriamente, o nosso corpo, uma vez que, por exemplo, é erotizado e a mulher concreta que existe em nós.


Agora te pergunto: Tem como ser Passista sem jornada? Tem como ser Passista apenas nos 3 dias de Carnaval?

O nosso samba no pé é um dos principais fundamentos da existência de uma escola de samba, não deixamos que o corpo que carrega não seja percebido como sensual elemento da dança. Aumente a percepção da mulher concreta que existe na imagem da Passista que você é.

Rafaela Bastos / Musa da Estação Primeira de Mangueira e da Nike ®, Geógrafa especializada em Gerenciamento de Projetos / Empreendedora / Comentarista de Carnaval / Palestrante /  Todos os direitos reservados
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